As greves de 1932-1933 na Beira e Lourenço Marques
Introdução
As práticas opressivas do colonialismo levaram ao surgimento das mais diversas formas de contestação ao regime, tanto no campo como nas cidades. As fugas, greves, manifestações artísticas e culturais, as manifestações estudantis e até a constituição de agrupamentos patrióticos de exilados, entre outras, são algumas formas que a resistência ao colonialismo em Moçambique assumiu até à década de 1960.
As greves de 1932-1933 na Beira e Lourenço Marques
As condições da década de 30 trouxeram, para a generalidade dos trabalhadores em Moçambique, a redução dos salários, a cobrança de impostos mais elevados, em suma o agravamento do custo de vida e das condições sociais. Aliado a isto, em grandes zonas do país, verificou-se uma intensificação no recrutamento forçado de trabalhadores, reduzindo as possibilidades de emprego para os trabalhadores voluntários. Aos trabalhadores moçambicanos, sujeitos às desvantagens do trabalho migratório e trabalho forçado, foi coarctada, pelo regime colonial, qualquer tentativa de criação das suas próprias organizações de classe.
Mas o facto de não haver organizações sindicais para os trabalhadores negros não significou que não se desenvolvesse uma luta da classe trabalhadora. Embora as informações sejam, por vezes, precárias, e não existam estatísticas precisas, a evidência sugere que milhares de trabalhadores se recusaram a fornecer a sua força de trabalho. Outros realizaram paragens de trabalho, reduções no ritmo de irabalho e manifestações como formas mais comuns de reinvindicarem as condições a que se julgavam com direito. Exemplos disso foram as paralizações dos trabalhadores assalariados da Beira e de Lourenço Marques que veremos a seguir.
A manifestação dos trabalhadores assalariados negros da Beira, 1932
Segundo os jornais da época, os efeitos da crise económica mundial em Manica e Sofala eram profundos. De facto, após 1928, a baixa de cotação para os principais produtos agrícolas dessas províncias provocou a falência de muitas machambas privadas coloniais e despedimentos nas grandes plantações. Desta maneira, a procura de mão-de-obra, nos empreendimentos agrícolas capitalistas, diminuiu consideravelmente, o que foi apenas parcialmente equilibrado pelo aumento de produção de citrinos e algodão.
Paralelamente, como consequência do declínio das exportações e importações de Rodésia do Sul, o tráfego ferro-portuário de Manica e Sofala diminuiu drasticamente, registando-se em Fevereiro-Março de 1932 o ponto mais baixo de sempre.
Segundo um jornal da época, as autoridades portuárias reduziram o número dos seus trabalhadores, de milhares para algumas centenas, e os caminhos de ferro e as agências de importação-exportação fizeram reduções semelhantes.
A crise de emprego foi agravada devido à redução drástica no número de empregados domésticos. No entanto, os agricultores de arroz nas zonas verdes, frequentemente os familiares dos trabalhadores ou desempregados na cidade, enfrentavam baixos preços para os seu produto devido à concorrência internacional.
Como aumentava o excedente de mão-de-obra, os salários baixaram, segundo os próprios trabalhadores, de uma média de 125-150 escudos para 75-100 escudos. Não se trata de coihcidência que, neste ambiente, os empregadores procurassem aumentar o ritmo do trabalho.
exemplo, no meio da crise os estivadores do porto foram incentivados pelos capatazes a bater o recorde regional (incluindo o da Africa do Sul) para o carregamento de milho, intensificando assim a exploração absoluta do trabalho.
A população de Manica e Sofala enfreãtava uma situação ainda mais grave. O declínio da actividade económica resultou numa baixa equiva lente dos rendimentos da Companhia de Moçambique, que até então tirava grandes benefícios de impostos sobre o comércio das duas províncias. Numa tentativa de compensar a baixa, a Companhia virou para uma fonte aparentemente mais segura de rendimento, o imposto de palhota: mesmo no meio da crise, elevou-se a taxa de 150 para 205 escudos.
A greve da 'Quinhenta' no porto de Lourenço Marques de 1933
Como vimos no capítulo anterior, a grande greve ferroviária de Lourenço Marques de 1926 foi neutralizada pelas autoridades coloniais. A repressão dos trabalhadores em geral foi intensificada, atingindo especial mente os trabalhadores negros do porto, voluntários, que veriam por diversas vezes reduzidos os seus salários e algumas das suas regalias. Além disso, o Estado que, em 1929, passou a controlar as cargas e descargas até então nas mãos de particulares, começou a substituir, cada vez mais, trabalhadores voluntários e ocasionais por trabalhadores forçados ('chibalo'), em turnos que cobriam as 24 horas do dia, reduzindo ainda mais os custos do trabalho e ameaçando assim os voluntários que restavam.
A imprensa de Lourenço Marques não deixou de referir constante mente à difcil situação dos trabalhadores, às suas precárias condições de vida e trabalho e aos baixos salários, alertando aqueles que detinham o poder e os patrões para as prováveis consequências que disso adviriam. Em Agosto de 1933, o salário dos estivadores eventuais foi reduzido de 12$50 escudos para 12$00 por dia. Os trabalhadores que, devido à diminuição do trafego e utilização crescente de 'chibalo', trabalhavam, apenas, dois ou três dias por semana, sentiram os efeitos da redução. Os $50 (quinhenta) eram o preço de cerca de 150 gramas de carne ou de arroz e, provavelmente, o preço mínimo de uma refeição para um estivador.
Concentrados no local próximo do actual mercado central, no dia 28 de Agosto, decidiram, em bloco, não retomar o trabalho até que os $50 fossem reconsiderados pelas autoridades do porto. A polícia, que tinha sido toda mobilizada, chegou ao local de concentração as 15.30 horas. Depois de algumas discussões e promessa de restituição da "quinhenta', os estivadores regressaram ao trabalho. Nas suas edições de 28/29 de Agosto, tanto o Lourenço Marques Guardian, como o Noticias, numa tentativa de minimizar a importância da greve, atribuíram-na à agitação promovida por uns poucos que, devido aos efeitos do vinho, tinham sido dispensados.
A 4 de Setembro, e dado que as promessas não haviam sido cumpri das, os trabalhadores dispuseram-se a paralisar, novamente, o trabalho. As autoridades reagiram, mandando a polícia cercar os estivadores, num recinto vedado à arame farpado na ponte-cais, impedindo-os de sair durante a hora do almoço. Os estivadores não tiveram outra alternativa senão regressarem ao trabalho, pois, caso não o fizessem, sabiam que seriam substituídos por chibalos', ou, pior ainda, seriam eles próprios presos por vadiagem e transformados em chibalos', com salários de 6 escudos por dia, em lugar dos 12 do salário então reduzido.
Quer O Brado Africano quer O Emancipador, jornais que de um modo geral, embora não sistemático, ainda pugnavam pelos interesses das camadas trabalhadoras, tomaram absolutamente partido pelos grevistas.
No dia 9 de Setembro, O Brado Africano dizia que "tinham e tem razão para se revoltar contra esse corte, que outra coisa não representa senão o fazerem economias à custa do preto".
Assim se justificou que, como resposta à redução salarial, os trabalha dores protestassem abandonando o trabalho "numa atitude que os dignifica" [51]. O Brado Africano que, em geral, não era favorável ao recurso à greve, mas reconhecendo ser a única forma de que os trabalhadores dispunham para reivindicarem os seus legítimos direitos, atacou fortemente as autoridades do porto pela decisão de reduzir salários e por não garantirem os quatro dias de trabalho por semana a todos os trabalhadores, "o que não é nenhum impossível". Atacando ainda a Direcção dos Negócios Indígenas pela ignorância demonstrada perante os acontecimentos, lamentou que a 'questão indígena' não merecesse o real tratamento, porque não seria assim que o problema seria resolvido. Num claro aviso às autoridades e ao poder colonial, alvitrava O Brado Africano de 9 de Setembro, o seguinte:
"Bom seria irem pensando muito bem no que sucederá amanhã, quando o preto estiver mais unido, instruído e óonhecendo os seus direitos e os seus deveres. Nessa altura o fechar as portas será o pior serviço que se poderá fazer aos que, cheios de razões e com a barriga vazia, se encontrem frente a frente com os patrões da ponte-cais, agaloados, bem comidos e cheios de dinheiro'.
Nos restantes meses de 1933, a situação em Lourenço Marques não melhorou, a avaliar ptla denúncia de situações de maus tratos, baixos salários e não cumprimento dos salários mínimos a praticar, conforme tabela elaborada pela Direcção dos Negócios Indígenas. Efectivamente, e sob pretexto de não haver serviço, algumas firmas industriais iam explorando os trabalhadores ainda mais, pagando-lhes diariamente 5 ou 8 escudos. E, novamente, na sua edição de 28 de Outubro e sob título de "Exploração da mulher pelo homem", O Brado Africano denunciava as casas que "dão trabalho, nas estâncias, a mulheres, o que é justissimo, mas que as exploram miseravelmente, pagando-lhes 30 escudos por semana", exigindo das autoridades que se mandasse "indagar do que se passa procedendo com justiça". Ainda, em Novembro, clamava O Brado Africano que a situação dos trabalhadores não melhorara "ali nas fábricas industriais a favor do preto".
Na Ilha de Moçambique, um grupo de pessoas tentou formar, em 1924/5, o Grémio Africano de Moçambique e, em 1926, a Liga Moçambicana; todavia, ambos morreram sem terem visto nunca a luz do dia. No entanto, foi dessas tentativas que surgiu, em 1930, o Grémio Luso-Africano da Ilha. Na Beira, foi criado, em 1932, o Grémio Africano de Manica e Sofala. Os seus objectivos não se diferenciavam dos das outras associações e foi sujeito às mesmas pressões da parte das autoridades. Segundo os seus estatutos, para além das actividades recreativas e culturais, propunha-se ainda a protecção moral e material dos africanos, em geral, e dos associados, em particular. O facto de que os seus membros seriam assimilados transparece na definição dos sócios ordinários como "africanos ... cidadãos portugueses", e na cláusula seguinte:
"...são considerados africanos todos os nativos portugueses e seus descendentes legítimos que sabendo ler e escrever português regularmente, adoptem os usos e costumes europeus e exerçam profissão, comércio ou indústria de que se possem manter".
No mesmo ano, o Grémio Africano de Manica e Sofala começou a publicar um semanário, A Voz Africana, que partilhava a iniciativa e entusiasmo literários do período 1930-1932. De facto, os participantes nas iniciativas dessa época julgaram-se uma nova geração que se não deixou intimidar pela actuação do então regime colonial, e que, segundo o próprio Karel Pott, "... revelou mentalidades dum grande valor moral e intelectual e marcou uma etapa de esplendor na história da nossa política ... ". Lutava sem tréguas pelo estabeleci mento de " ... uma imprensa nossa, retintamente africana...".
O conteúdo dessa fase de jornalismo político pode-se avaliar através de O Brado Africano que, apesar de denunciar publica e veementemente os "desvairos, desmandos, desvios de poder, esbanjamento", era um jornal dominado pela pequena burguesia reformista, cujo objectivo era somente 'humanizar' o colonialismo. Esta ideia transparece mais num extracto do editorial de 27.2.1932, cujo titulo era "Basta", onde se escreve:
"Desejamos de vós, enfim, uma mais humana política..."
No mesmo editorial ainda se pode ler: "Não pretendemos as comodidades de que vós rodeais, à custa do nosso suor, se bem que a elas houvéssemos mais direitos que vós; não pretendemos a vossa refinada educação,&ão alardeada na nossa presença, pois não desejamos viver obsecados pela ideia de roubar ao nosso semelhante aquilo de que ele carece e que não nos pertence. Não, mil vezes! Antes a nossa selvageria que tanto vos enche a boca ... e as bolsas". 1 Apesar da aparente rejeição dos valores do colonizador, ao mesmo tempo, pronuncia-se o desejo de igualdade de todos perante a lei, quando se lê, no mesmo editorial: "Queremos ser tratados como aos vossos tratais". Estava assim selada a ambiguidade. Por um lado critica-se e recusa-se a cultura do colonizador e, por outro, reivindica-se a igualdade dentro do próprio sistema do colonizador.
Conclusão
Terminando trabalho pude concluir que Em 1933 rebentou a chamada greve Quinhenta, no porto de Lourenço Marques, contra violentos cortes salariais. Em 1947, uma nova série de greves nas docas da capital espalhou-se para plantações vizinhas, culminando, no ano seguinte, numa insurreição abortada. A repressão foi feroz, com centenas de detenções e deportação de alguns participantes para S. Tomé. Em março de 1956, nova greve dos estivadores de Lourenço Marques termina com quarenta e nove mortes. Em 1963 rebentaram greves nos portos de Lourenço Marques, Beira e Nacala, agora já com alguma coordenação clandestina, mas que se saldaram, novamente, pelo fracasso e por uma violenta repressão.
Bibliografia
- Jorge Jardim, Moçambique, Terra Queimada, Intervenção, Lisboa, 1976.
- Fernando Amado Couto, Moçambique 1974. O fim do império e o nascimento da nação, Caminho, Lisboa, 2001, pp. 283-312.
- Raimundo Domingos Pachinuapa, Do Rovuma ao Maputo: A Marcha Triunfal de Samora Machel, Edição do Autor, Maputo, 2005.
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